O livro “Q&A” foi escrito pelo diplomata indiano Vikas Swarup e publicado em 2005.
Em 2008, a partir de um roteiro adaptado da obra, o mundo conheceu o filme “Quem quer ser um milionário?”, dirigido por Danny Boile.
Feito na Índia, o filme conta a história de Jamal Malik, um jovem das favelas de Mumbai, que aparece na versão indiana do programa de TV, acertando as respostas de maneira sucessiva pela sincronicidade de fatos pregressos de sua própria vida.
Se você ainda não viu, fica a minha recomendação. Se já viu, vale a pena ver de novo.
Em vários momentos da viagem pela Índia que acabo de fazer, lembrei deste filme.
CENA 1 – passei a noite em um trem indiano, saindo de Ranchi a caminho de Dwarahat. Milhares de pessoas na estação, muitos com as malas empilhadas na cabeça. Pessoas dormindo no chão, gente pedindo dinheiro, Sadhus e Swamis sentados, cachorros por todos os lados. Ratos grandes nos trilhos de trem.
Dormimos em camas-beliche nos vagões onde a palavra “limpeza” não parecia constar no dicionário. Dentro do meu saco de dormir e com o travesseiro que havia levado, demorei para pegar no sono. Cenas misturadas do tal filme por conta da estação ferroviária, do banheiro do trem (uma experiência inesquecível), dos ratos e de toda a austeridade ficaram comigo durante um bom tempo, junto com o receio de um acidente. Peguei no sono sem perceber e, curiosamente, quando chegamos na parada final e o fiscal acendeu as luzes, me peguei rezando por mais alguns minutos de sono ali. Estava confortável, acomodado, tranquilo…
Como na história da formiga que aprendi por lá: a formiga é sábia por coletar somente o açúcar e deixar a areia.
Apesar do entorno desafiador, a viagem de trem me envolveu.
Exaustão ou adaptação?…
CENA 2 – alguns dias depois, subimos uma montanha chamada Pandhukoli. Quatro horas de caminhada entre a subida e descida, chegando a 2500 metros de altitude. Uma montanha mística, associada aos Pandavas do Mahabharata.
Nosso guia se chamava Kamal. Seu nome, em sânscrito, significa flor de lótus, um símbolo de pureza e divindade. Os olhos de Kamal me lembraram os de Dev Patel, o ator do filme. Olhos atentos, humanos, de uma pureza difícil de descrever.
Seguindo Kamal pela trilha na subida, andamos por um bosque cujas árvores estavam com um pouco de neve nos galhos, que derretia aos poucos pelo sol da manhã. Parecia uma espécie de floresta encantada, com gotas de água caindo como se fossem bençãos. Ao chegarmos no topo da montanha, o portal de entrada para a área do templo tinha um grande sino, que toquei muitas vezes, emocionado.
Quem conhece os ritos do Grupo Proposito sabe que tocamos sinos todas as vezes que temos boas notícias, quando conquistamos novos projetos ou finalizamos os que estão no pipeline.
Mas ali, talvez pela altitude, temperatura e cansaço, ou pela inspiração e certa magia do local, toquei muitas vezes o sino. Pelo ritual sagrado de um lugar místico, junto com um guia de olhos de luz cujo nome significava divindade.
Imaginação ou devoção?…
CENA 3 – no penúltimo dia da viagem, estávamos em Rishikesh, cidade que se tornou famosa pela temporada de 3 meses que os Beatles passaram lá, quando escreveram diversas músicas, entre elas “Across the universe” (cujo refrão ensina que “nothing is going to change my world” – neste caso o “nothing” é o vácuo, o silêncio interior).
Naquela cidade ganhei uma grande lição da Índia.
Fomos fazer compras em um mercado, frequentado pelos indianos locais. Em seguida, descemos até o Ganges para dar uma olhada na vista, minha mulher e eu, acompanhados de uma guia.
Eis que ela tem a ideia de irmos a pé até o ashram de um swami (guru) para se informar sobre a cerimônia do Mahashivaratri, uma importante celebração hinduísta, que aconteceria naquela noite. O restante do grupo foi para o hotel com o outro guia, e nós 3 fomos a pé até o tal templo, margeando o Ganges.
Eis que não mais que 300 metros depois, a paisagem muda radicalmente.
Saímos da simplicidade e entramos na miséria. Do nosso lado, a favela mais pobre e suja que vi em toda a viagem.
Novamente, o filme me vem à cabeça.
E, na nossa frente, um riacho, que precisávamos cruzar. Na verdade um pequeno rio de esgoto a céu aberto que desaguava no Ganges.
Devíamos voltar? Entrar na favela para tentar pegar um tuk-tuk? Ou tentar atravessar?
Rapidamente a guia e minha mulher passam para o outro lado, molhando os pés na água suja.
Eu, enojado, comecei ir de um lado e para o outro, tentando ver quais pedras eram mais firmes, para conseguir pular sobre a água, sem sujar meu tênis.
Quinze minutos depois, e após várias cenas de cocô, cabras, cachorros, lixo e crianças, achei um trecho que me pareceu factível, estreito o suficiente.
Respirei fundo.
E pulei.
Caí do outro lado do riacho com um pé na parte seca e o outro com a ponta na água, mas em uma parte mais funda. Me desequilibrei e quase caí de costas com o corpo todo no esgoto…
Me contorci e me contraí, caindo com os dois joelhos nas pedras e quase luxando o pulso esquerdo.
Irritação, raiva, indignação.
Cortes nos dedos e joelhos, álcool gel por todas as partes possíveis e imagináveis.
Mas mais do que isso, uma lição.
Onde estava a minha flexibilidade? Minha aceitação? Minha adaptação àquela situação?
Certamente tirar o tênis, sujar os pés e depois lavar teria sido muito melhor.
Melhor do que tentar teimar, controlar, resistir. E me machucar…
Controle ou aceitação?…
Na minha versão pessoal – e também indiana – do filme “Quem quer ser um milionário?”, TODAS as respostas do jogo estão no autoconhecimento.
Do julgamento inicial à empatia.
Da expressão constante da minha opinião ao silêncio ou escuta ativa.
Do “meu” usual para o “nosso”.
Do acumular para o escolher impactar.
Da racionalidade predominante para a integração com a espiritualidade.
Do hábito do conforto para o ensinamento da austeridade.
Da resistência com o desconhecido ao encantamento com novos reflexos no espelho, tanto da mente quanto da alma.
Obrigado, Índia.
Volto melhor, mais consciente e mais humilde.
Também mais motivado para tentar impactar lideranças e empresas por meio do meu trabalho.
Para buscarmos, juntos, melhores perguntas e respostas mais centradas.
Pois para ser um milionário neste enredo, a melhor direção é o caminho interior.
Escrito por André Caldeira