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Como ser um bom ancestral: o ESG numa perspectiva mais individual.

Publicado em 29/03/2024

Terminei de ler esta semana “Como ser um bom ancestral” de Roman Krznaric.

Um super livro, uma grande provocação sobre o mundo que queremos deixar para nossos descendentes, para nossos tataranetos. E também uma inspiração para este artigo.

No livro, Krznaric alerta sobre o tempo que vivemos, um tempo que reforça a cultura da gratificação imediatista. Do fast-food às mensagens instantâneas, do “Compre agora” nos sites de e-commerce ao fast fashion com novas coleções a cada quinzena, da Internet de centenas de gigas à busca incessante de fórmulas milagreiras para emagrecer ou se manter jovem, da pressão crescente nas empresas para resultados trimestrais crescentes aos almanaques de 10 passos para nos tornarmos grandes líderes.

O autor contrapõe tudo isso com o chamado “tempo profundo”, que é o nosso tamanho real como indivíduos e seres humanos, como raça, na linha do tempo da existência da civilização humana na Terra. Um lembrete grandioso e necessário sobre a humildade e a impermanência (somos absolutamente passageiros nesta existência, como nos ensina o budismo). E com uma provocação importante: coloque um zero na frente do seu ano de nascimento e perceba a mudança da sua perspectiva sobre o tempo futuro (no meu caso, 01968).

Claro que aqui existe um contraponto contundente: nossas práticas atuais como humanos, profissionais e empresas e as consequências para o planeta que queremos deixar para nossos tataranetos.

Nas palavras de John McPee: “Considere a história da Terra como a antiga medida da jarda inglesa, a distância entre o nariz do rei e a ponta de sua mão estendida. Uma passada de lixa de unha em seu dedo médio apaga a história humana”.

Um verdadeiro tapa na cara sobre nosso tamaniculo e a consequência de nossas ações no nosso planeta. E no futuro planeta de nossos descendentes.

Um outro tema importante do livro trata sobre nossa tendência à conformidade e zona de conforto. Um bom exemplo é o famoso teclado QWERTY que usamos até hoje, cujo layout foi projetado por volta de 1860 para evitar que as teclas da máquina de escrever mecânica emperrassem, deixando as letras mais comumente usadas bem longe umas das outras. Seguimos neste tipo de padrão até hoje, em muitas outras frentes da realidade, sem sequer nos darmos conta da razão de nossas atitudes. Ou seja, seguimos fazendo o mesmo, sem nos darmos conta de que certos hábitos podem ser muito prejudiciais. A nós e ao planeta.

Se no passado as tribos indígenas acompanhavam a passagem do tempo com uma abordagem circular pautada na natureza (movimentos de rotação da Terra, de translação ao redor do Sol, estações do ano, fases da lua etc.), a mudança emblemática aconteceu quando trocamos o chamado tempo circular pelo tempo linear.

O tempo linear é mercantil, pautado na tirania do relógio, na crença do ditado “tempo é dinheiro”, e não no tempo como dádiva divina. Basta lembrar das mudanças vividas por pessoas workaholics que se defrontam com doenças terminais ou a perda de entes queridos. Some de imediato o tempo mercantil e entra o transcendental.

No livro, o tempo mercantil é exemplificado a partir do ano 1374, aproximadamente quatro anos depois que o primeiro relógio público foi instalado na cidade de Colônia, na Alemanha, quando a primeira lei para regular o tempo dos trabalhadores para almoçar passa a existir. Com a criação do relógio fabril nasce o modo “comando e controle”, com o relógio de fábrica como arma fundamental da Revolução Industrial.

Um salto no tempo linear e vemos hoje as tecnologias atuais das redes sociais como uma espécie de GPS que insiste em nos conduzir, só que para o destino errado, sempre nos distraindo, nos induzindo a links, apps ou conteúdos que não buscávamos ao iniciar uma sessão de navegação ou de uso do celular. E mais: nossos smartphones atuais como uma espécie de relógio de fábrica, capturando o nosso antigo tempo pessoal e trocando-o por infoentretenimento, propaganda e fake news. A economia da atenção nos abduzindo, nos distanciando cada vez mais do conceito verdadeiro do “tempo profundo”. Como provoca o autor: as redes sociais são uma espécie de Pavlov e nós os cachorros, com pequenas doses de dopamina liberadas a cada mensagem ou curtida recebida, a cada novo post compartilhado…

Por trás dos algoritmos das redes sociais existe um conceito atávico, embrenhado na nossa amígdala cerebral como seres humanos: a busca da conexão social, do vínculo, da empatia.

Darwin acreditava que o sucesso de uma tribo seria maior se seus membros estivessem sempre prontos a ajudar uns aos outros e a se sacrificar pelo bem comum. Traços cooperativos como uma forma de garantir a sobrevivência – daí a importância da ajuda mútua e da empatia aos olhos da teoria evolucionista. Ou seja, precisamos da empatia e da ampliação de perspectiva para fugir da armadilha do ego, da dose de dopamina das redes sociais e da miopia do agora.

O livro nos lembra que atualmente usamos recursos naturais em um ritmo que é quase o dobro do que a Terra é capaz de regenerar e absorver a cada ano. E também que, no mundo natural, a definição de sucesso é a continuidade da Vida. Você se mantém vivo e mantém sua prole viva. Em linguagem mais dura (e realista): “Se quiser sobreviver e prosperar por milhares de anos, não emporcalhe o ninho”.

E como traduzir isso para o mundo corporativo?

Um bom exemplo é o de Paul Polman, ex CEO da Unilever, que no dia em que assumiu o cargo chocou os analistas de mercado ao abolir os relatórios trimestrais para desafiar a constante pressão de curto prazo do mercado de ações. “Imaginei que não poderia ser demitido no meu primeiro dia”, disse ele na época. A partir do início de seu mandato como líder da gigante multinacional, buscou alternativas como o uso de matérias-primas sustentáveis, a mentalidade da interconexão com os diferentes stakeholders e a consideração de valores e propósito com a mesma importância que o resultado financeiro. Nas palavras de Polman “Ética significa fazer a coisa certa para uma perspectiva de longo prazo e tomar conta da sua comunidade. Essa é a maneira como você realmente quer que um negócio responsável seja gerido”.

Ou seja, a modificação do antigo modelo linear de projeto industrial (“take, make, use, lose”) para uma abordagem mais sustentável, mais longeva, mais sistêmica e sustentável.

Reflexões e provocações sobre comportamentos individuais, coletivos e corporativos que me fazem pensar sobre o tempo profundo, sobre as consequências de nossas ações, práticas e políticas, sobre o mundo que queremos deixar para nossos tataranetos.

Que tipo de ancestral quero ser? Como quero ser lembrado? E você? Como quer ser lembrado? E o mais importante: o que estamos fazendo hoje/agora para isso?

A morte não pode ser a linha de corte da nossa visão de mundo. Não estaremos mais aqui no planeta dos nossos tataranetos. Mas os resultados de nossas ações, sim. O conceito de tempo profundo pode nos levar na direção da apatia (“não farei nenhuma diferença”) ou do legado (“farei a minha parte na diferença”).

Pensemos que todos estão no mesmo recorte do tempo profundo: os mortos, os vivos e os ainda não-nascidos. Esta perspectiva cria um senso de conexão e responsabilidade. E me estimula (nos estimula, espero) a querer ser um bom ancestral.

“Não herdamos a terra de nossos antepassados; nós a tomamos emprestada de nossos filhos”. (Provérbio Apache)

 

Escrito por André Caldeira