Preparar herdeiros é muito mais do que planejar a sucessão

Preparar herdeiros é muito mais do que planejar a sucessão

Depois de tantos anos acompanhando histórias de famílias empresárias (em conselhos, em salas de sucessão, em conversas que misturam números e emoções), há uma cena que se repete. A mesa está cheia, os papéis estão em ordem, o planejamento está pronto. Até que alguém pergunta: “E o herdeiro, o que ele quer?” O silêncio que muitas vezes se segue diz muito.

Durante muito tempo, essa pergunta soava quase como uma ameaça. Como se o “não querer” colocar o sobrenome na porta fosse uma desonra. Hoje, vejo o contrário: quando uma família tem coragem de fazer essa pergunta (e de ouvir a resposta), ela está em outro estágio de maturidade.

Garantir o futuro de um negócio não é necessariamente preparar o herdeiro para a posição de número 1 da empresa. É preparar o herdeiro para qualquer caminho que ele escolha, e preparar a empresa para um novo cenário. Quando a família se organiza para continuar sendo família

Governança familiar é o nome sofisticado que se dá ao esforço de colocar método onde antes só havia sentimento e afeto. É quando a família entende que tradição e amor não bastam para sustentar uma empresa através de gerações. É preciso ter regras, combinados, espaços seguros de conversa, antes que as divergências virem muros.

O Conselho de Família cumpre exatamente esse papel. É como o coração que bombeia cultura, valores e propósito entre e intra gerações. É ali que se decide quem entra, quem se afasta, como se lida com dividendos, como se educa a nova geração.E, principalmente, é ali que se ensina a diferença entre ter o mesmo sangue e ter o mesmo compromisso.

Quando bem estruturado, esse conselho faz com que os almoços de domingo deixem de ser assembleias informais e voltem a ser o que deveriam ser: encontros de família.

Educação para herdar (e para decidir o que fazer com isso)

Governança sem formação é castelo sem alicerce. As famílias que entenderam isso estão criando programas de educação para herdeiros que se parecem mais com uma escola de vida do que com um MBA. Em seu paper “Preparing heirs for tomorrow’s family business” (EY, 2025), James Bly, Managing Director da área de Family Enterprise da EY nos Estados Unidos, sintetiza com precisão o desafio atual:

“Estamos preparando a próxima geração para o negócio do futuro ou apenas treinando-a para o negócio como ele existe hoje — ou até ontem?”

A provocação de Bly reflete um ponto crucial: preparar herdeiros não é reproduzir o modelo existente, é antecipar o que ainda virá. Ele defende que a longevidade das empresas familiares depende menos de inovação tecnológica e mais da capacidade de formar sucessores com pensamento estratégico, visão sistêmica e repertório para navegar em contextos imprevisíveis.

O Project Primus, citado pelo Wall Street Journal, nasceu com essa lógica: ensinar jovens herdeiros a pensar como empreendedores e investidores, não apenas como beneficiários. É como se, antes de entregar o cofre, fosse preciso ensinar o valor do que há dentro dele. E não só o valor financeiro, mas o simbólico também.

Esses programas costumam incluir finanças, história da empresa, ética, propósito, mas, sobretudo, consciência de escolha. Porque, na visão das famílias, o herdeiro pode, sim, decidir seguir outro caminho, desde que o faça com entendimento e responsabilidade.

Quando o legado é plataforma, e não destino

Nas famílias mais evoluídas, a herança não é uma âncora; é um trampolim. E o que antes era visto como rebeldia (a ovelha-negra que não quer trabalhar na empresa) agora é interpretado como expansão.  Afinal, se a primeira geração criou um negócio, por que não deixar a segunda criar o seu?

A WEG segue sendo um bom exemplo de como tradição e futuro podem caminhar juntos. A empresa, que nasceu como um empreendimento familiar em Jaraguá do Sul, acaba de anunciar um investimento bilionário em Santa Catarina, voltado à expansão de novas plantas industriais e desenvolvimento de tecnologias sustentáveis. Esse movimento não é apenas sinal de crescimento econômico; é também resultado de uma estrutura de governança que se manteve sólida ao longo de décadas.

Profissionalizaram a gestão, mantiveram o controle acionário e deram às novas gerações a liberdade de seguir diferentes trajetórias. É o tipo de arranjo em que a estrutura protege, mas não aprisiona.

Penso que famílias empresárias bem-sucedidas são como árvores antigas: raízes profundas, tronco firme, mas galhos livres para crescer em direções diferentes.

Herdar é verbo

Talvez o erro esteja em tratar herança como substantivo, algo que se recebe. Herdar é verbo, ou seja, pede ação, preparo, reflexão. E a governança familiar é o que dá gramática a esse verbo: define papéis, estabelece fronteiras e, principalmente, preserva o diálogo entre gerações.

Porque, no fim, o verdadeiro legado não está no que se deixa PARA os herdeiros, mas no que se deixa DENTRO deles.

 

Um artigo originalmente publicado por Ruth Bandeira.


 

Fontes de referência

https://www.ey.com/en_us/insights/family-enterprise/preparing-heirs-for-tomorrow-s-family-business

https://www.wsj.com/articles/project-primus-looks-to-teach-family-scions-how-to-invest-b4ea0e70

https://investnews.com.br/negocios/nao-e-so-motor-a-weg-e-lider-na-producao-de-herdeiros-bilionarios/ https://www.infomoney.com.br/business/realeza-de-sc-7-herdeiros-da-weg-lideram-lista-da-forbes-de-bilionarios-mais-jovens/

https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2025/10/06/fabrica-de-super-ricos-weg-investimento-bilionario-em-sc.ghtml

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